domingo, 23 de agosto de 2009

Como piratas e enfermos - uma enfermidade: ganas de pulsar (.2)

São enfermos, pois herdeiros de um pressuposto cultural que aos poucos se esfarrapa e revida suas dissidências com os recursos do isolamento, da doença, das promessas, dos tiros e cassetetes, dos ferros quentes e das felicidades pré-fabricadas. Enfermos pois desencantados. Enfermos, portanto perigosos. Enfermos pois por demais pacíficos. Enfermos pois desejantes. Enfermos pois conspiradores de tragédias mórbidas em antros festivos sem muitos limites. Enfermos pois ansiosos por algo mais substancial que a morbidez mesma. Enfermos pois promíscuos, nem homem nem mulher nem feminino nem masculino. Enfermos pois esteticamente desajustados. Enfermos pois acordam e se alimentam em horas ou ocasiões pouco esperadas, de uma maneira um tanto “esquisita”. Enfermos por estarem aborrecidos. Enfermos por verem algo mais numa casa caída, morta e desvivida. Enfermos pois escolhem tirar os pés da história quando da urgência disso. Enfermos por não portarem convicção histórica. Enfermos pois todo tipo de convicção histórica exala o cheiro podre das ideologias. Enfermos por encontrarem também na solidão um estímulo de riqueza comparável às coletividades construídas. Enfermos por viverem a coletividade sem um compromisso lógico para isso. Enfermos por viverem a coletividade com fluidez e dela extraírem motivações e experiências profundamente festivas. Enfermos pois escolhem o momento para conspirar e a hora de declarar o conflito. Enfermos pois fazem de cada festividade uma possível orgia que grita a todos os cantos. Enfermos por não terem lugar e viverem, por conta disso, o incômodo e a suavidade de todo ser nômade. Enfermos por fundarem, a partir de um não-lugar qualquer, o não-centro de seus murmúrios secretos, de suas declarações perante o mundo, de suas modorras proclamadas, de seus escapes ociosos, de seu esforço braçal, de suas inspirações vitais. Enfermos por não se pretenderem de modo algum à organização imediata e demandarem, antes de tudo, por algo que seja orgânico e capaz de trocar irrestritamente com os universos que os circundam. Por não se pretenderem aos pontos grandes e invisíveis. Por partirem sobretudo do que é seu agora. Enfermos pois não é preciso que haja problemas em se estar satisfeito com nada. Por terem como causa a causa de nada, e ainda assim se moverem desvairados por qualquer quebrada ou em prol de qualquer coisa, sem um “aonde” ou um “o quê” muito impenetrável. Por incorporarem a mutabilidade incontornável das coisas, como o organismo vivo que muda para estar vivo, que quer viver e vive mudando, inevitavelmente. Pois se apaixonam odiosamente e não há paradoxo qualquer nisso. Pois se apaixonar pode consistir em se sentir profundamente só ou em conviver em profundidade com tudo mais. Pois seus corpos se respiram e a pele é rasa. Pois não têm de estar definitivamente de acordo, hoje, com nada do que disseram ontem. Pois se perguntam onde está o “ontem” senão penetrado em seus corpos. Enfermos porque o oceano é de pedra, o movimento é labiríntico. Porque seus portos são abrigos de organismos transitantes. Porque seus abrigos são organismos transitantes através de um mar revolto de metal e cimento. Pois o mar é, por si só, uma loucura identitária afogada num turbilhão macro-paranóico. Enfermos pois sua “doença” é paranóica, tal como as bases mesmas dessa modernidade falida devem ser a cadeia de paranóias que são. Enfermos pois sabem que o moderno chega rápido e, num sopro, atropela tudo, travestido de campos de concentração ou objetos de luxo, trabalho ou entretenimento. Estranhos que são em cada lugar, em cada trincheira, em cada linha-de-fogo. Piratas pirateiam e trocam, já acordam com essa “doença” impregnada. “Doentes”, “perversos”, “criminosos sociais”, "apaixonados" – pois assim acusa a maré verticalizada e febril do asfalto e do concreto, do ferro e do fogo, do poder hierárquico e do trabalho assalariado que, por igual, valem no máximo sobreviver. Pois deve-se ser suficientemente amoral para decolar os pés do chão, para escolher em que momento fundar e demolir suas utopias, para ser declaradamente utópico e delirante assim que convir.

O que há de mais doentio nisso tudo, se os dedos que apontam e definem (como supostas autoridades) a anomalia estão distantes e não têm tempo de se olhar a si próprios? Se piratas não são nem desejam ser especialistas de patologias demasiado humanas e modernas? Piratas enfermos são “loucos” e especialistas em nada. Enfermos pois enfermidades não comportam “porquês” definitivos e isso pode tornar louco a qualquer um.

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