quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Como piratas e enfermos - despeitosos e delicados desejos (.1)


"- Eu não tenho que gerar um filho ou plantar uma árvore... mas seria bom, voltando para casa depois de um longo dia para alimentar o gato como Philip Marlowe, ter febre, dedos enegrecidos do jornal.
- Para ser animado, não só pela mente, mas por uma refeição.
- Até a linha do pescoço, por uma orelha.
- Para mentir.
- Com os dentes.
- Enquanto você estiver caminhando, para sentir os seus ossos se movendo.
- No passado, acho que ao invés de sempre saber.
- Para ser capaz de dizer: "Ah" e "Oh" e "Hey", em vez de: "sim e amém." - sim.
- Para ser capaz de entusiasmar com o mal, tirar todos os demônios dos passantes, e persegui-los para o mundo.
- Para ser um selvagem.
- Ou para sentir como é tirar os sapatos debaixo da mesa e contorcer seus dedos do pé, descalço, como aquele.
- Fique em paz.
- Deixe as coisas acontecerem.
- Mantenha sério.
- Nós só podemos ser selvagens na medida em que continuamos a sério.
- Não faça mais do que olhar, agregar, testemunhar, preservar.
- Permanecer espírito, mantenha a distância, mantenha sua palavra.
(...)
- É muito bom viver apenas pelo espírito, para testemunhar, a cada dia, por toda a eternidade, só o lado espiritual das pessoas. Mas às vezes fico cansado com a minha existência espiritual. Em vez de sempre pairando acima, eu gostaria de sentir que há algum peso sobre mim, para terminar a minha eternidade e me ligar à terra. A cada passo, cada rajada de vento, eu gostaria de poder dizer: 'Agora, hoje e agora', e não mais dizer: 'desde sempre' e 'para sempre'. Para sentar na cadeira vazia, na mesa de cartas e ser saudado, ainda que apenas por um aceno de cabeça."


(do longa-metragem Asas do Desejo)


Há quem passa e desaparece. Há quem passa-observa e toma para si. Há quem chuta a porta e quer morar. Há quem passa e dali faz morada. Há quem chega e dorme. Há quem acorda e descansa. Há quem pára e lamenta. Há quem se enche de preguiça e se permite sentir-se assim. Há quem grita para fora mas engole goela adentro. Piratas e doentes, circulam e fazem flerte com o dinamismo de coisas, perguntas que se casam com desejos indefinidos e muito pouco verdadeiros, enquanto cada lugar nunca se pretende o mesmo lugar, tempo e espaço não necessariamente convivem numa relação regular e estável. Pode-se dizer “pouco verdadeiros” por algo muito simples: esse tipo não busca digladiar-se com aqueles que classificam e autorizam verdades unânimes, que ainda escancaram seus dentes e declaram fogo aberto aos que se diluem, se fluem, se mudam, se tocam sem medo nem precauções exageradas, e transitam como se as perguntas não devessem ser problemas acabados, mas questões possíveis e pouco solúveis. Há quem se posiciona e escolhe o que é de fato briga sua e que treta já se perdeu por nunca ter se passado num ringue proveitoso. Enfermos em esquinas de quinas tortas. Inválidos por vontade própria. Vagos, vagabundos, desocupados, desencantados, fascinados, alucinados, feios, bonitos, vai saber quantas outras conceituações arbitrárias (e conceitos são por si só arbitrários, já se sabe) o vizinho, o milico, a doutora, a vovó, o capanga, o dono vão acabar por lhes imputar. A contradição de pernas abertas. A multipolaridade das coisas. As redes que tampouco existem, ou se fazem aparecer de vez em quando. Tão estranho dizer, mas demasiado doentes para terem lar. Piratas enfermos que são, param em portos, encontram os seus e trocam como possível. Caminham para ver se a inquietação passa ou para observar melhor, de um lugar melhor, cada aspecto, cada perspectiva, cada nada perfumado. Dói a alguns, a outros apraz, a outros não tem efeito qualquer (às vezes, nem muda coisa alguma). Não há lugar necessário, os portos são de passagem, mas neles fica quem quer, o quanto quiser, sempre que der. Ambulância... Nomadismo... Como nômades, ambulam, percorrem sem eixo, desbravam a inexplicabilidade própria de estar desperto e não se poder fazer muito quanto a isso. Fazer vazar, escorrer, sair por aí, sumindo e ressurgindo, deixando portos seguros mais seguros, levantando estruturas e reclamando vida (pois se trata de ser faminto por vida e não por mais e mais tralhas) diante das cantigas da sobrevivência. Não é parte de uma convicção, mas uma confirmação de vivências: só o presente pode ser total, em sua sucessão de agoras inigualável.

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